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A Raiz do Pampa

Há uns vinte dias atrás, me vi diante de uma decisão difícil. Três opções: ir a Montevidéu, para a abertura de uma nova livraria; a Santiago, para inauguração de uma foto minha no Centro Cultural ou baixar hospital imediatamente para extirpar uma vesícula totalmente infeccionada. Pensei: preciso, antes de mais nada, salvar minha vida. E a maldita vesícula era quem vinha causando todos os bodes dos últimos meses. Mas pensei também: ah, Montevidéu. No Uruguai que não conheço mas que tanto amo literariamente. Onetti, Quiroga, Felisberto Ernandes. Poder conhecer pessoalmente o Alfredo Fressia, que fez uma bela matéria comigo para o suplemento literário do jornal El País (sai às sextas e é facílimo de encontrar em Porto). Mas e Santiago? E meu Passo da Guanxuma? Há 12 anos eu não ia lá- desde o centenário da cidade. E antes desses 12 haviam se passado outros 12 sem ir. De repente, pensei: 12, o ciclo completo de Júpiter.

- Vou a Santiago, disse ao meu médico. Mas, ele tentou dizer. Vou e pronto, expliquei. É um assunto espiritual.

Depois disse, meu irmão Felipe, grande e solidário companheiro, aceitou me levar de carro. E fui, e fomos percorrendo o Rio Grande do Sul abaixo. Deus, como é belo o Pampa. Pela janela pouco a pouco foram vindo as paisagens a bico de pena e aquarela. Capões solitários entre colinas suavíssimas, revoadas de garças alvas. Ranchos perdidos, taperas solitárias no descampado. Açudes transparentes refletindo fiados de nuvens do céu absolutamente azul. Gradações de luz e cor, nos verdes, nos claros, nas sombras. Tudo como que pintado e quase sem seres humanos. Alguma chinoca na beira da estrada. Oriental, o Pampa é oriental. Budista. Essencial.

E suspirávamos, chegando cada vez mais perto dos paraísos ecológicos de Jaguari e Ernesto Alves. E então, o antigo aeroporto. Os campos onde roubávamos girassol. Eu e o Augusto, que mora na Noruega. Mas cada vez que vem para o Brasil vai direto para lá, para o Pampa...

Nos três dias seguintes, minha tia preferida Elcy Abreu Flores fazendo comidinhas deliciosas. Meu primo Airton, lidando com seu som e namoradas gatíssimas. Tanta gente, tanta coisa boa, vital, verdadeira. As mudas de Palmeira e hibisco roxo que pedi ao vizinho. A roseira trepadeira que a tia Elcy me deu. Tanto povo da memória revivida. A lua cheia enorme, dourada, entrando pela janela do quarto onde dormi, para banhar meu pobre corpo escalavrado.

Depois, a volta lenta pelo Pampa budista. Eu e meu irmão, querendo mudar para lá.

Três dias depois, eu estava no hospital. Catéteres. Dores. Morfina. Médicos delicadíssimos. A cara da morte debruçando-se sobre a minha. Sobrevivi. Estou aqui. "Você é forte", me disseram. De onde vem tanta energia? Veio de Santiago, do meu Passo da Guanxuma. Por que? Porquê, eu não soube responder, mas penso agora: porque é da própria raiz que o ser vivo arranca a sua energia. E a minha raiz está lá, plantada fundo nas aquarelas japonesas de Érico Veríssimo, Cyro Martins, Sérgio Faraco. Não se trata de regionalismo, mas sim de religião, re-ligare. E graças ao meu bom Deus e a todos os anjos- reais ou imaginários que me cercaram por esse dezembro, eu estou vivo. E isso é muito bom.

Uma das últimas crônicas escritas por Caio Fernando Abreu, em 1995.

Estação do Conhecimento

A Estação do Conhecimento foi planejada para valorizar a história e o patrimônio da Terra dos Poetas.

É um espaço dinâmico de cultura que busca fortalecer a identidade cultural de Santiago/RS, oportunizando momentos de conhecimento e lazer, bem como evidenciar a importância que a Estação Férrea teve para o desenvolvimento local, tornando viva a memória ferroviária.

Seus atrativos:

Pavimento Térreo: Memorial Ferroviário
São quatro salas que contam, através de painéis e mobiliário, a história dos trens e da ferrovia no mundo, Brasil, Rio Grande do Sul e Santiago. Os visitantes conhecem um pouco das ferrovias pioneiras, as primeiras locomotivas e principalmente a relação da cidade com a chegada do trem.

Pavimento Superior: Memorial dos Poetas
É um espaço destinado à memória dos artistas homenageados nas duas primeiras quadras da Rua dos Poetas, onde figuram personalidades como Aureliano de Figueiredo Pinto, Túlio Piva, Caio Fernando Abreu, entre outros. Além de possuir uma sala exclusiva para a história do município, justificando a identidade cultural de Terra dos Poetas.

A História:

A Estação Santiago faz parte da linha Porto Alegre – Uruguaiana dentro do ramal que, partindo de Dilermando de Aguiar faz conexão com São Borja e Cerro Largo. Essa linha destinava-se a fazer ligação entre a capital com a fronteira oeste, inicialmente, mais por objetivo estratégico do que econômico.

Construída pelo 1º Batalhão Ferroviário, foi inaugurada no dia 24 de junho de 1936 e no dia 1º de julho do mesmo ano, a chegada do primeiro trem era comemorada na Vila, enquanto continuavam as obras até São Borja. Vários engenheiros-chefes e empreiteiros fixaram-se na localidade nessa fase, o que contribuiu para um grande movimento social e cultural.

Desde o estabelecimento do Exército, até o fim da década de 1930, com a chegada do trem a Santiago, foram inúmeras as transformações ocorridas em todos os aspectos da vida social. Sendo que em 31 de março de 1938 a Vila de Santiago foi elevada à condição de Cidade.

O Projeto:
Com o fim do transporte de passageiros na cidade o patrimônio predial ferroviário ficou em pleno abandono, se deteriorando com a ação do tempo e do vandalismo. E assim foi durante muitos anos, até que a partir de 2009, a Prefeitura Municipal de Santiago iniciou o processo de revitalização dos prédios, investindo na qualificação do espaço e tornando-o um Ponto de Cultura a serviço da comunidade regional.

Fez-se uso de recursos próprios e dos profissionais do quadro funcional do município, o que possibilitou que o sonho torna-se realidade. E no dia 03 de janeiro de 2011, nas comemorações de 127 anos de Santiago, foi inaugurado o espaço cultural, que se tornou o principal ponto turístico da Terra dos Poetas, cenário muito utilizado para fotos que percorrem as redes sociais. Atualmente encontra-se fechada para visitação, aguardando uma reforma em sua estrutura.

Fragmento Caio - Estação

“Suponhamos que eu tivesse levado três, no máximo cinco minutos para apanhar a mochila, essa bagagem típica e mínima de quem não se importa de andar de lá para cá o tempo todo sem paradeiro, saltar do trem e subir as escadas da plataforma até o corredor de saída, naquele passo meio desconfiado dos recém-chegados a algum lugar onde nunca estiveram antes. Suponhamos também que tenha olhado em volta à procura de K ou de qualquer outra pessoa inteiramente desconhecida e parada na estação deserta, segurando um cartaz com meu nome escrito, e talvez então tivesse me detido um momento a pensar vago que sempre foi um dos meus sonhos – esse: desembarcar numa estação deserta e desconhecida para encontrar alguém igualmente desconhecido segurando meu nome num cartaz erguido bem alto, sobre todas as outras cabaças dos que partem ou chegam, pois essa é a estação que imagino (...)”

Caio F. Bem longe de Marienbad. In: Estranhos Estrangeiros. São Paulo : Companhia das Letras, 1996, p. 17 e 18.